Jornada de dados: o futuro é a Engenharia do Conhecimento, aposta Maria Vanina Martínez

Uma das mais proeminentes cientistas da computação da América Latina diz que entendemos a inteligência artificial equivocadamente e que é necessário um novo olhar sobre os dados.

“A equação é fácil: você pode ter um sistema muito inteligente, mas, se o alimenta com lixo, o mais provável é que o resultado não explore ao máximo a capacidade desse sistema”. Como toda boa cientista, Maria Vanina Martinez se dedica a investigar questões complexas e apresentá-las da forma mais clara possível. E ela não tem dúvidas quanto ao uso limitado ou equivocado que fazemos dos dados.

Na verdade, a professora da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais (FCEyN) da Universidade de Buenos Aires e pesquisadora adjunta do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina vai além: é preciso mudar a maneira como trabalhamos com inteligência artificial, pois os resultados obtidos pelos modelos atuais são, em muitos casos, imprecisos e insuficientes.

Pós-Doutora em Ciência da Computação, a acadêmica foi apontada, em 2018, pela prestigiosa revista IEEE Intelligent Systems Magazine, como uma das 10 promessas mundiais em inteligência artificial. Também foi pesquisadora-assistente na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e na Universidade de Maryland, nos EUA.

Maria Vanina Martinez

Maria Vanina Martinez, a professora da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais (FCEyN) da Universidade de Buenos Aires e pesquisadora adjunta do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina

Orange Business: Muito se fala sobre a transformação digital ter sido acelerada pela pandemia da Covid-19. Porém, a quem se destina essa transformação?

Maria Vanina Martinez: Os grandes players do mercado tecnológico são primordialmente os maiores beneficiados, como se vê pelo aumento de faturamento que esses gigantes tiveram nos últimos meses. Por outro lado, vejo que a vida do cidadão médio também mudou durante a pandemia e há muitas coisas que foram agilizadas. Em países como a Argentina, por exemplo, já não é necessário fazer tudo de forma personalizada, e há coisas que já são impossíveis de serem feitas se não de forma digital ou telefônica. Mas voltando aos grandes beneficiados, trata-se um pouco de um círculo vicioso: quem tem mais possibilidades de chegar à população com apps e soluções digitais são os que absorvem maior quantidade de dados. Isso lhes permite posicionar-se melhor perante a concorrência e controlar ainda mais o mercado.

Orange Business: Podemos dizer que empresas estão usando bem os dados que obtêm?

Maria Vanina Martinez: O problema é a falta de modelos de dados. Existe a ideia de que é possível unir big data, toneladas de dados, em uma sacola gigante, jogar um algoritmo de machine learning (ML) e pronto, o negócio vai se transformar de um dia para o outro. Infelizmente, não é assim que funciona. Os algoritmos de machine learning são maravilhosos, mas têm pouco de “inteligência”. Uma empresa de médio porte pode usar modelos modestos, que não fazem mais do que procurar padrões estatisticamente significativos em um conjunto de dados. Isso permite transformar dados brutos em informação. Com essa informação, um usuário humano pode entender os dados em contexto e tomar decisões de melhoria. Esses algoritmos de ML não pedem modelos de dados muito sofisticados, porém tampouco levarão a resultados tão significativos sozinhos. O futuro é a engenharia de conhecimento: transformar dados em conhecimento. É ele quem define as políticas de ação. Isso é a inteligência artificial propriamente dita e pressupõe um bom modelo de dados. Mas as empresas ainda focam a aquisição de algoritmos de inteligência artificial e se recusam a analisar seus dados.

Orange Business: Em relação aos aspectos sociais e de privacidade, é o caso de dizer que o uso de dados representa mais riscos que benefícios?

Maria Vanina Martinez: Me parece que o importante é entender quais benefícios e riscos vêm à reboque. A tecnologia não é neutra, os dados não são neutros e as pessoas que os pensam, desenham e implementam tampouco o são. Em todos esses pontos existe um viés, implícito ou explícito, intrínseco ou criado, existem interesses, principalmente econômicos. É importante tomar consciência desses assuntos e começar a trabalhar em uma construção de marcos regulatórios que permitam e impulsionem o desenvolvimento responsável da tecnologia.

Orange Business: Um hacker, certa vez, disse que o cientista da computação era “o bruxo moderno”: admirado, temido e seu trabalho, um enigma. O que acha da analogia?

Maria Vanina Martinez: Boa. Eu acrescentaria que, assim como os bruxos, muitas vezes, os cientistas da computação também não sabem muito bem como fazem o que fazem. A realidade é que os métodos utilizados baseiam-se em modelos muito complexos, que, em geral, são caixas pretas. Conhecemos o modelo matemático subjacente, porém, à medida que os sistemas e a quantidade de dados crescem, não entendemos as razões pelas quais o algoritmo entrega um resultado particular. Em muitos casos, estudos posteriores demonstram que essas razões não se servem do grau de interpretação que temos do modelo. Um exemplo é como os sistemas de visão por computador podem não funcionar como esperamos. Há o famoso caso do sistema que leu um cartaz de “PARE” como um sinal de velocidade permitida. No fundo, ainda não entendemos a lógica exata do algoritmo quando enfrenta os dados.

Orange Business: O que virá depois da indústria 4.0, IA, blockchain e tantas outras disrupções?

Maria Vanina Martinez: Aposto na engenharia de conhecimento baseada em IA, mas uma IA que será um pouco diferente da que temos hoje. Muitos pesquisadores dizem que o deep learning pode resolver tudo e eu acredito que não é bem assim. São necessários sistemas capazes de trabalhar em um nível mais alto de abstração, que possam aprender de uma maneira mais inteligente. Os sistemas atuais aprendem padrões, mas não conceitos. As soluções não são facilmente transferíveis de um domínio ao outro, mesmo quando os problemas são semelhantes. Para isso, são necessários outros modelos, talvez baseados mais em lógica ou na combinação de lógica e ML. Essa é a revolução que está por vir.

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